Literatura

COMENTÁRIOS (IR)RELEVANTES DE UM PRETENSO LITERATO
Eis o nome deste canal, no qual o miuneiro Filipe Ferrari compartilhará um pouco de seu gosto pela literatura com os internautas. Fique ligado, pois ótimas dicas de leitura sempre estarão figurando por aqui, bem como alguns detalhes quase imperceptíveis sobre várias obras... coisas que só um pretenso literato é capaz de notar e revelar com clareza, numa peculiaridade que merece destaque.

Crime e Castigo - Fiódor Dostoiévski

Outro clássico da literatura universal, esse livro caracteriza-se por se basear numa visão sobre religião e existencialismo, tendo seu foco predominante na questão de atingir a redenção por meio do sofrimento, sem deixar de trabalhar algumas questões do socialismo e niilismo.

Dostoiévski foi uma das maiores personalidades da literatura russa, tido como fundador do Realismo. Sua mãe morreu quando ele era ainda muito jovem e seu pai, o médico Mikhail Dostoievski, foi assassinato pelos próprios colonos de sua propriedade rural em Daravoi, que o julgavam autoritário.

Em 1849 foi preso por participar de reuniões subversivas na casa de um revolucionário, e condenado à morte. No último momento, teve a pena comutada por Nicolau 1° e passou nove anos na Sibéria, sendo quatro anos no presídio de Omsk e mais cinco como soldado raso. Descreveu a terrível experiência no livro "Recordações da Casa dos Mortos" e em "Memórias do Subsolo".

Suas crises sistemáticas de epilepsia, que ele atribuía a "uma experiência com Deus", tiveram papel importante em suas crenças. Dostoiévski necessitava de dinheiro e sempre fora apressado em concluir suas obras, por isso disse não conseguir realizar seu pleno poder literário. Mais tarde, por saber bem o que as seguintes palavras significavam, disse: "A pobreza e a miséria formam o artista." Embora a frase pareça abrangente e generalizada, Fiódor costumou desviar-se do estilo de escritores que descreviam o círculo da família moldados na tradição e nas "belas formas", e engendrou no caos familiar os que humilhavam e insultavam. Essencialmente um escritor de mitos, criou um trabalho com uma enorme vitalidade e de um poder quase hipnótico, caracterizado por cenas febris e dramáticas, onde os personagens apresentam comportamento escandaloso, e atmosferas explosivas, envolvidas em diálogos socráticos apaixonados, a busca de Deus, do mal e do sofrimento dos inocentes.

Todo esse contexto transparece em Crime e Castigo. Rodion Românovitch Raskólnikov, o personagem principal, é um estudante que mata uma velha agiota, e para justificar a si mesmo o crime, apregoa a sua teoria de que existem homens que são superiores aos outros, e para estes, as regras sociais não contam. Nesse quadro, ele coloca César, Napoleão e ele mesmo. O livro corre então no drama psicológico do rapaz, enquanto correm as investigações do crime.

A obra trabalha a questão do crime, consciência e redenção de forma espetacular e magistral, e, junto com “Os Irmãos Karamazóv”, garantiu a Dostoiévski um lugar no panteão dos grandes escritores ocidentais.

O Castelo - Franz Kafka (1883-1924)

Burocracia, problemas cotidianos, a imersão eterna em problemas e na angústia, até o ponto em que somos tomados e não nos damos conta de onde estamos. Essa é a aldeia do castelo em que chega o agrimensor K., no romance “O Castelo” (1922), de Franz Kafka.

Tcheco, que escreve em alemão, Kafka nasce em uma tradição judaica, mas sempre encontra-se alienado de suas origens, sempre um estrangeiro em seu mundo, sua cidade, e até mesmo em sua casa. Suas histórias dão voz ao indivíduo que caminha nas ruas das grandes cidades contemporâneas, permeadas sempre de extremas ironia e lucidez. O olhar kafkiano é direcionado para elementos tais como a opressão burocrática das instituições, a "justiça" e a fragilidade do homem comum frente a problemas do dia a dia.

Em “O Castelo”, percebe-se claramente a sua crise existencial, pois através do absurdo da história do agrimensor K. (de Kafka?), um funcionário contratado para trabalhar em um certo castelo de um certo conde, que ao chegar, enrola-se em uma teia burocrática, sem ao menos saber se seria contratado, e que o oprime e sufoca em todos os elementos possíveis. Ali, não há a possibilidade de revoltar-se com o mundo, já que ao mesmo tempo que vai tomando conhecimento desta realidade, o personagem percebe que foi absorvido pela rotina. Este romance possui algumas similaridades com outro romance do autor: “O Processo”: por exemplo, os protagonistas dos dois livros (de mesmo sobrenome) são inicialmente perturbados pelo Estado por certo motivo, mas logo percebem a burocracia e os absurdos do sistema, perdendo-se em seus meandros.

Para ler Kafka são necessários alguns cuidados especiais, entre eles, contar com uma certa atenção à maneira com que toda obra se constrói, principalmente seus períodos; estar sempre consciente de que toda a criação literária de Kafka foi dolorida, feita com o intuito de não parecer bonita, de ser, principalmente, uma obra baseada na dor; ficar atento a todos os detalhes do texto, pois em Kafka, até as imperfeições são propositais, ou seja, segundo Theodor Adorno, até "as deformações em Kafka são precisas".